Tuesday, November 18, 2014

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desmitificações orientais…parte 3

"é de manhã, vem o sol mais os pingos da chuva que ontem caiu…"…

é com essa canção jobineana que me levanto nessa manhã ensolarada de outono..disposto, ergo os ofutons do tatame...e ávido, abro as janelas, para a troca de ar da casa…eis que invade o meu quarto aquele cheiro de peixe assado, sem tempero e queimando nos pequenos fornos do fogão…vale ressaltar que pra cada época do ano, um tipo de pescado…o da atual estação é o 'sama' (cavalinha), iguaria grelhada com barrigada e tudo…

mesmo assim, sem reclamar...já deveria ter me acostumado, nessas duas décadas e meia…acendo um incenso e faço os deveres dosméticos…isso mesmo, aqui é você quem lava, limpa e cozinha…chance de se contratar os serviços de alguém, só pra abonados e prédios de grandes firmas…onde trabalho, nas horas de ociosidade, o gerente bota o staff pra limpar vidros e ar condicionados, tirar poeira e lavar os banheiros…essa é a praxe daqui…

enquanto aspiro a casa, ouço o vizinho do apartamento de cima sair, arrastando uma enorme mala…inclusive faz meses que isso acontece…não todos os dias, mas ocasionalmente, nos finais de semana…por que hoje, nessa quarta-feira???…

desde que se mudou pra cá, esse cara e sua 'ex-room mate' tinham uma vida comum e comunitária normal…nos papos rápidos, eles nos revelaram que são instrutores de social dance…aquela modalidade em que o casal parece um enfeite de bolo de noiva e pulam como dois bonecos pelo salão…de imediato fiquei receioso, afinal as casas daqui são de madeira e papelão…qualquer ensaio mais empolgado poderia fazer meu teto desabar…mas, felizmente, os dois, nessa questão, eram conscenciosos…oxalá

após alguns meses, descobrimos os horários desses vizinhos…chegavam antes da meia-noite e até se recolherem ás 4 (quatro) da matina, concentravam-se nas tarefas domésticas…lavar e pendurar roupas, cozinhar e assistir televisão…até aí, tudo num volume aceitável, pra quem é músico e costuma plangear sua viola nesses horários de escuridão e silêncio…mas o que irritava era um chinelo (provavelmente de salto) que a moça dançarina usava pra fazer tudo isso…um sapateado catatônico que no cotidiano da madrugada foi transformando meu humor feito aquele personagem em quadrinho que fica verde…o hulk..
minha esposa...atitude nada habitual dos japas...foi bater na porta deles, pelo menos umas duas vezes, para pedir mais cuidado com os chinelos e o sapateado ensurdecedor…sem resultado, uma noite, exausto, peguei a vassoura…atitude habitual dos brazucas…e com o cabo dela bati no teto incessantemente…durante a madrugada inteira…não dormi, mas eles também não e apesar do silêncio de cima, não vieram se desculpar e coisa e tal…de qualquer maneira, na semana seguinte, a moça se mudou e o cara continuou sozinho…

a vida corre na política da boa vizinhaça, ou seja, na hipocrisia (tatemae), pra mantermos o respeito mútuo…e tempos depois esse cara trouxe uma outra moça pra morar junto…dessa vez, uma namorada…ela permanecia mais tempo em casa, durante o dia e o apartamento deles vivia com janela escancaradas e cortinas abertas…e á noite eles deveriam curtir o namorico dos nubentes…tudo ótimo, até que uma tarde, enquanto me preparava pra sair pro trabalho, ouço o som de uma cascata…sem titubear, abro a janela, surpreso com o inesperado temporal que caía na cidade…ledo engano…o som era de água desabando, mas dentro de minha casa, vinda de cima…a namoradinha do dançarino dormiu e esqueceu de conectar uma mangueira na máquina de lavar…então todo o volume com sabão e sujeira desceu pelo soalho deles, infiltrou-se pelo forro do meu apartamento e inundou minha área de serviço…
desesperado, corri pra avisá-la…levou alguns minutos pra moça se levantar e abrir a porta…e a máquina debatendo-se toda enquanto cintrifugava a roupa deles…gritei pra que ela desliga-se tudo…desci de novo pra minha casa, tentei limpar o estrago, atrasado pra apanhar o ônibus…a moça desce, chorando, com lápis e papel nas mãos, pra anotar os valores dos objetos avariados…e eu pedi…feche essa torneira também, depois vemos isso…
quando retornei do trabalho, minha esposa conversava com a mocinha em casa, já tudo limpo, e se confraternizavam com um cafezinho (pilão)…meno male…
e tudo continuou na normalidade da rotina, até que, logo após o terremoto de 2011, achei estranho não ver mais a namoradinha do dançarino…desapareceu, literalmente, de uma hora pra outra…e o cara começou a ter atitudes incomuns…manter a casa fechada, não mais pendurar roupas na varanda, não abrir a porta (só falar com alguém, com ela cerrada)…ainda brinquei com minha esposa…"acho que ele está na 'fossa'…vou ensaiar uns sambas-canções também"…

agora há pouco, quando termino a faxina e abro o computador, leio entre as notícias daqui, que um homem manteve o corpo esquartejado de uma mulher, durante dois anos, dentro da geladeira…espero que as viagens com malas pesadas, a conduta soturna do vizinho bailarino de cima, não despertem minha verve agatha christie sherlockhomeana…

obs. procurando casa pra me mudar (outro episódio dessas desmitificações)…
amplexossonoros e perdoem o desabafo prolixo...




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